quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Análise: Maltempo

Maltempo, de Alfred - Devir

Maltempo, de Alfred - Devir
Maltempo, de Alfred

Geralmente mais centrada na publicação de banda desenhada de origem japonesa, bem como de alguns comics americanos, a editora Devir lançou há poucas semanas duas obras de autores europeus: Crónicas de Jerusalém, de Guy Delisle, e este Maltempo, de Alfred, de quem a editora já tinha publicado, em 2022, a obra Como Antes.

Quer Como Antes, quer este Maltempo, fazem parte de uma trilogia, da qual ainda consta Senso, que é ambientada em Itália. São histórias independentes e diferentes entre si, mas que têm em comum as paisagens e cultura italianas como pano de fundo.

Estava bastante desejoso de ler este Maltempo e posso dizer-vos que, se já tinha gostado dos trabalhos anteriores de Alfred, este Maltempo ainda consegue superar Como Antes

Maltempo, de Alfred - Devir
A história centra-se em Mimmo, um rapaz de 15 anos que vive numa pequena ilha italiana onde os dias soalheiros são uma constante. Embora as paisagens sejam de cortar a respiração, com a natureza a pontilhar a vista de verdejantes montes e vales e de um belo azul profundo, quer no céu, quer no mar, a vida nesta ilha não é fácil para os seus habitantes. A pobreza é um destino do qual não parece ser fácil de escapar e para isso também não ajuda que a máfia condicione a vida local. Ou que a calma da ilha pareça ameaçada pela construção de empreendimentos hoteleiros que as gentes locais tentam sabotar. As aspirações de um adolescente como Mimmo parecem, pois, estar mais que condicionadas. Para não dizer "condenadas". Ser-se pobre ou fazer-se parte da máfia local parecem os dois únicos caminhos possíveis.

No entanto, quando um canal de TV anuncia que vai fazer audições naquela ilha para um espetáculo musical na aldeia, Mimmo, que tem a sua guitarra como companhia omnipresente, encara esta iniciativa como a grande oportunidade da sua vida. Junta então os seus três amigos, com quem tem uma banda de rock há muito tempo, e procura resgatar essa simbiose musical com os colegas, através de ensaios, para que a apresentação perante o canal de TV possa ser um sucesso e catapultar os quatro rapazes para uma vida bem sucedida em Roma. Mas a vida local, com todas as suas dificuldades, encontros e desencontros, bons e maus timings, faz com que essa simples tarefa de reunir quatro adolescentes para ensaiar, possa não ser tão fácil quanto parece.

Maltempo, de Alfred - Devir
A forma como o autor constrói a jornada interior do protagonista é notável. Mimmo não é apenas um jovem lutando contra as forças externas; ele é um reflexo das escolhas difíceis que todos enfrentamos em algum momento da vida. O autor convida o leitor a criar empatia com a luta de Mimmo, sem julgar, mas apresentando as complexidades da sua realidade de forma honesta. Por outro lado, os outros três amigos e elementos da banda de Mimmo, também têm as suas próprias lutas individuais que o autor Alfred sabe explorar bem num livro que aborda temas como destino, livre-arbítrio e o impacto das condições sociais sobre as escolhas individuais. Alfred não oferece respostas fáceis, mas constrói uma narrativa que desafia o leitor a questionar as estruturas do poder e as alternativas disponíveis para aqueles que vivem à margem.

Em termos visuais, o autor oferece-nos uma obra verdadeiramente charmosa e elegante. Visualmente, Maltempo é impressionante. Alfred utiliza uma paleta de cores subtis e evocativas, captando a melancolia e a beleza da paisagem mediterrânica. Os cenários insulares e as figuras humanas são trabalhados com um detalhe expressivo, ainda que simples, que reforça o impacto emocional da narrativa. Cada vinheta é uma obra de arte em si, servindo tanto para avançar a história quanto para criar momentos de contemplação.

Maltempo, de Alfred - Devir
É verdade que já tinha apreciado aquilo que o autor nos deu em Como Antes, mas, pelo menos em termos de desenho, é inegável a evolução que houve dessa obra para este Maltempo  - ou mesmo para Senso, que tive a oportunidade de ler na sua versão francesa e que espero que a Devir venha a editar brevemente por cá. Face a Como Antes, o traço do autor parece mais limpo e confiante e a própria organização do espaço visual apresenta-se mais harmoniosa em termos estéticos. Cada pequena enseada, cada monte ou vale que o autor nos vai dando quando, inteligentemente, utiliza as curtas viagens de vespa de Mimmo para fazer os leitores percorrerem as plácidas e belas paisagens do sul italiano, fazem com que este seja um livro que nos faz viajar, levando-nos a esquecer o nosso dia a dia. E é bem provável que, para muitos leitores, aumente o desejo de conhecer ou voltar à bella Italia.

A edição da Devir apresenta-se de boa qualidade. O livro tem capa dura baça e bom papel baço no seu interior. Os acabamentos, a encadernação e a impressão apresentam boa qualidade.

Em resumo, Maltempo é uma obra que combina uma narrativa envolvente com uma arte expressiva, oferecendo uma reflexão profunda sobre as escolhas individuais face às circunstâncias sociais e económicas adversas. É um livro com o potencial de transcender as barreiras da BD, já que pode apelar tanto a leitores de banda desenhada como a amantes da literatura em geral devido à sua história que, embora profundamente enraizada numa realidade específica, possui uma universalidade que ressoa amplamente. Alfred mostra-nos que, mesmo nas circunstâncias mais sombrias, a esperança e a resistência humana podem encontrar formas de se manifestar. Um doce embalo de viagem e, a par do fabuloso Bairro Distante, de Jiro Taniguchi, o meu livro preferido da Devir lançado durante 2024!


NOTA FINAL (1/10):
9.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Maltempo, de Alfred - Devir

Ficha técnica
Maltempo
Autor: Alfred
Editora: Devir
Páginas: 324, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 14,8 x 21 cm
Lançamento: Novembro de 2024

2 comentários:

  1. Viva Hugo. Belíssima obra, sem dúvida. Pena que a Devir tenha decido truncar o formato original de 202 x 264 mm para 148 x 210 mm (no site da Wook 176 x 243 mm). Porquê?... Já agora julgo que a obra tem 180 páginas, correcto?

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    1. Tenho que confirmar a questão das páginas, já que não tenho o livro aqui ao pé de mim, de momento. A versão francesa que tenho da obra de "Senso" - que imagino que seja igual às versões francesas de "Como Antes" e "Maltempo" - é, de facto, maior do que as edições da Devir.

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