terça-feira, 12 de maio de 2020

Análise: Verões Felizes - 1 (Rumo ao Sul! e A Calheta)



Verões Felizes - 1 (Rumo ao Sul! e A Calheta), de Zidrou e Jordi Lafebre 

Quando, em 2019, li este Verões Felizes pela primeira vez, mal queria acreditar no que tinha em mãos. Com uma arte visual maravilhosamente desenhada e colorida, bem típica do que de melhor se faz no franco-belga, equilibrando um estilo de ilustração algures entre o cartoonesco e o semi-realista; e com uma história profundamente nostálgica e real que, tem o condão de nos remeter para o passado feliz da nossa infância, bem... a minha certeza foi uma: estávamos perante um clássico instantâneo da banda desenhada. E talvez por isso, ocupou a primeira posição no top das minhas melhores leituras de 2019.

Volvidos alguns meses, e no mês em que a Arte de Autor publica o segundo livro de Verões Felizes – desta vez, reunindo os tomos 3 e 4, Menina Esterel e O Repouso do Guerreiro, respetivamente - estou ainda mais certo que este Verões Felizes - 1 é dos melhores livros que li em anos. E mais do que ser “melhor” ou “pior” porque, bem sei, que cada um de nós, leitores de banda desenhada, terá os seus próprios gostos, acho que há aqui uma coisa em que, certamente, todos poderemos concordar: trata-se, efetivamente, de um clássico instantâneo da banda desenhada. O primeiro livro da série até pode (só) ter sido lançado em 2015, mas isso não lhe tira o potencial de ser um clássico que marcará gerações ao longo dos anos. E, afinal de contas, “um clássico” é tudo aquilo que será recordado anos, décadas, mais tarde. Estou certo que Verões Felizes está nesse rol de livros. Pode até não ser um sucesso de vendas internacional, como são certas obras mais comerciais – e aí a derradeira “culpa” será (sempre) dos leitores. Todavia, isso não invalida que não seja uma obra marcante e inolvidável para todos os leitores que a lêem. Um clássico, portanto.

Neste primeiro álbum duplo de Verões Felizes, estão reunidos os números 1 e 2, ou seja, Rumo ao Sul! e A Calheta. Ambas as histórias são centradas nas férias dos Faldérault, uma família belga que, chegado o tão esperado verão, parte de férias, em viagem de carro, rumo ao Mediterrâneo para umas merecidas férias ao sol. O que o livro faz de espantoso é conseguir que, de alguma forma, todos os leitores se identifiquem com algo na história ou nas suas personagens. E não digo isso pela série estar carregada de chavões e lugares comuns. Não se trata disso. Até porque a verdade é que todos nós, somos mais iguais entre nós, do que aquilo que gostamos de admitir. Todos temos um humor muito próprio dentro da nossa família, costumes singulares, tradições específicas, que vão sendo repetidas ano após ano. É pois óbvio que cada família será diferente e original nas suas tradições e nos seus costumes. Contudo, não tanto como pode parecer. De facto, parece-me que somos parecidos na nossa diferença. Ou diferentes, na nossa semelhança. Como preferirem. No meu caso, a minha infância foi no final dos anos 80 e princípio dos anos 90, e não nos anos 70, como a família de Verões Felizes. O carro dos meus pais não era uma Renault 4L e nós nunca acampámos. Mas, a questão não é essa. Não é que eu, ou qualquer outra pessoa que me lê, tenhamos (que ter) uma família igual à de Verões Felizes. Mas temos, indubitavelmente, muitas semelhanças. Voltando à minha experiência, a minha família era grande como a desta história – também somos 4 irmãos - e também rumávamos ao sul, mais concretamente ao Algarve, quando chegavam as férias. Eu também me refugiava na banda desenhada, tal como o filho da família Faldérault e, claro, as férias eram uma animação constante, com disputas e birras entre irmãos, mas muitos momentos de ternura e inesquecível palhaçada. E o meu pai, tal como o pai dos Fálderault, também era o maior cómico de todos nós. Também havia um certo “não planeamento” de férias, tal como o desta família belga. Sabíamos para que zona íamos mas nem sequer íamos com marcação. Era apenas quando chegávamos, que íamos à procura de um alojamento onde ficar. E isto, naturalmente, e também como em Verões Felizes, era o rastilho para ínúmeras situações hilariantes. São memórias que ficam no nosso livro mental de recordações e nos nossos corações. Estas são as minhas. As do leitor serão, naturalmente, outras. Mas em todas há alguns pontos em comum.

E o autor do texto desta obra, Zidrou, faz um trabalho soberbo. Não sei se as férias desta família são oriundas do seu imaginário ou se serão situações dum foro mais biográfico, da sua própria existência. Seja como for, estão captadas para o texto de forma magnífica. As personagens são verossímeis. Os dramas da mãe, as palhaçadas do pai, os pudores da filha mais velha, o humor da filha do meio, as “cromices” do pequeno Louis, as palavras mal ditas da filha mais nova, que está a aprender a falar... todas essas coisas são reais. Aconteceram no passado e acontecerão no futuro. E em todas as famílias. E, de uma certa forma, e talvez por isso, este livro consegue ser bigger than life, como dizem os ingleses. Não há ficção... há realidade nestas páginas.

Mas será então uma história naïf de regresso à infância, apenas? Um olhar imberbe de reflexões no passado? Não. Não, mesmo! Aliás, só uma leitura muito desprendida e superficial, permitirá tal conclusão. Há temas bem adultos aqui presentes. Especialmente nas personagens adultas que, embora pareçam ser muito bem dispostas e divertidas, (também) têm problemas conjugais e do foro profissional, pois não estão satisfeitas ou realizadas com aquilo que, até agora, atingiram. E isso, mais uma vez, é a vida real. As férias da família, os momentos com as crianças, são os próprios momentos de escape das personagens. Tal como ler Verões Felizes funciona como um duplo escape para nós, leitores. Senão vejamos: temos o primeiro escape que é sermos remetidos para momentos felizes do nosso passado, mas fazemo-lo através de um livro que já é, por si só, um meio de escape.

E como se não bastasse já tudo isto, os fãs de banda desenhada ainda têm aqui um presente extra: é que o pai da família, Pierre, como é criador de banda desenhada, remete-nos para esse imaginário que nós, leitores de bd, temos sobre os criadores da banda desenhada que marcaram a nossa vida, demonstrando como era a criação de banda desenhada e a vida dos seus autores. Em suma, Verões Felizes (também) é uma carta de amor à banda desenhada enquanto género.

Além do mais, esta série não é apenas um conjunto de personagens inesquecíveis, com bonitas histórias de amor familiar entre elas. É também uma banda desenhada magníficamente ilustrada, com cores lindíssimas. Se Zidrou tem um papel importantíssimo na história e construção narrativa, Jordi Lafebre tem um papel de igual relevância, ao assegurar uma arte inesquecível. Aliás, não há aqui um “elo mais forte” nesta dupla: ambos os autores são fantásticos. E completam-se um ao outro. 

Assim, para além de ser um ilustrador completo, com uma grande capacidade de desenho de objetos, ambientes, veículos, paisagens... penso que é na construção das personagens que o seu trabalho mais impressiona. O tal estilo franco-belga, que mencionei no princípio, que é semi-realista e cartoonesco, encaixa que nem uma luva nesta história e nestas personagens. Outra coisa onde diria que Lafebre está entre os melhores, é na caracterízação das expressões das personagens. É que, sendo esta uma série emotiva, as personagens presenteiam-nos com as mais variadas expressões: cómicas, tristes, interrogativas, pensativas, etc. E ainda por cima, com tantas crianças, que são sempre muito expressivas, o desafio de ilustração era grande. Mas isso, é passado de forma sublime para as páginas do livro, através de uma grande capacidade de ilustração de expressões. Não raras vezes, o leitor fica com o mesmo sorriso terno perante um momento terno, com a mesma cara pateta perante um momento pateta ou com o mesmo nó na garganta perante um momento que deixa as personagens com um nó na garganta. Lafebre é um especialista em desenhar “expressões verdadeiramente expressivas”, passo a redundância.

Olhando com um pouco de mais detalhe para as duas histórias que nos são dadas neste primeiro livro, ambas nos levam aos verões de 73 e de 69. No primeiro tomo, a família já tem 4 filhos. No segundo tomo, Madô, a mãe da família, está grávida. É interessante, do ponto de vista narrativo, porque certas coisas que são um desejo das personagens, como por exemplo o novo trabalho de Madô na sapataria Shoe Shoe ou um novo herói que Pierre está a desenhar no tomo 2, já nós sabemos, antecipadamente, que não correram tão bem como as personagens esperavam. No fundo é fazer a história andar para trás do primeiro para o segundo tomo. E cada número, isto é, cada verão, está sempre marcado pela música que, na altura, passava na rádio. Tal como em cada verão há peripécias e momentos que os tornam únicos e inesquecíveis.

A Arte de Autor, que tantos livros de qualidade superior tem trazido para o mercado português, está de parabéns por mais uma série deste gabarito. Como crítica construtiva, diria apenas que as páginas promocionais deste livro, deveriam ter sido escolhidas com mais cuidado. É que havia tanto por onde escolher! Aqui no Vinheta 2020 apenas costumam ser publicadas as imagens promocionais das editoras por isso, este é um daqueles casos em que é altamente recomendável uma visita à página de instagram do Vinheta 2020, onde são partilhadas as páginas mais impressionantes.

Verões Felizes - 1 é um daqueles casos raros em que o livro é recomendável para toda a família. Para crianças com 8 anos e para idosos com 88 anos. Para toda a gente. Porque, afinal de contas, quem de nós não gosta de aproveitar uma viagem às memórias de um passado feliz? Algo correu mal na vida de alguém que me diga que não aprecia nada neste livro. Será que, simplesmente, não tem coração? Tenho 35 anos e adoro esta série. Sei que daqui a 30 anos continuarei a adorar esta série. Adorá-la-ia se a tivesse lido com 10 anos. E é por isso que é um clássico instântaneo. A partir do momento em que a lemos. Prémios valem o que valem mas quando, no ano passado, este livro ganhou o prémio de melhor álbum estrangeiro no Festival de Banda Desenhada da Amadora, essa distinção ficou, a meu ver, muito bem entregue.


NOTA FINAL (1/10):
9.6


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Verões Felizes 1 (Rumo ao Sul! e A Calheta)
Autores: Zidrou e Jordi Lafebre
Editoa: Arte de Autor
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Data de lançamento: Junho de 2019

2 comentários:

  1. Boas, desde já obrigado pelas suas partilhas sobre o mundo da BD. Gostaria de lhe fazer uma pergunta, qual seria a forma mais lógica para se ler esta BD, visto que dentro dos volumes os anos mudam? Sei que qualquer que seja a forma que se opte ler que não há alteração da história nem spoilers.

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    1. Olá, Frederico. E obrigado pelo seu comentário. Faz uma observação interessante. De facto, ao longo dos seis tomos, a série anda para a frente e para trás em termos cronológicos e talvez seja um exercício interessante seguir essa cronologia. No entanto, julgo que a ordem de leitura deve ser a normal, isto é, respeitando a ordem dos lançamentos, até porque foi assim que a dupla de autores foi imaginando e criando a série.

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