A editora Devir vive um dos melhores momentos na edição de banda desenhada dos últimos anos! E prova disso é a recente notícia que até no mercado franco-belga e americano de banda desenhada a editora pretende entrar no próximo ano.
Mas, falando do mercado japonês, também é relevante e digno de elevada nota que a editora, de há um par de anos para cá, tenha concentrado alguma da sua atenção na edição de mangás destinados a um público mais maduro.
E este Bairro Distante, de Jiro Taniguchi, que hoje vos trago, é um belo exemplo dessa aposta de qualidade, assumindo-se como um dos mangás da editora mais obrigatórios. Não apenas para quem já lê mangá, mas para todos os que apreciam boa banda desenhada!Sendo Jiro Taniguchi conhecido por ter o estilo mais europeu dos autores japoneses, não será surpresa para muitos leitores portugueses - que têm acarinhado as várias edições portuguesas (pela Devir e pela Levoir) das obras do autor - que o seu trabalho seja de singular qualidade. E lamentavelmente, faltava que Bairro Distante, uma das obras (compreensivelmente) mais aclamadas do autor, também por cá fosse editada. Felizmente, há poucas semanas essa lacuna editorial ficou corrigida. Até porque, a par de Diário do Meu Pai, este foi o melhor livro que li do autor.
Bairro Distante apresenta uma premissa de história muito original e interessante que assenta numa questão muito simples: e se fosse possível voltarmos atrás no tempo?
O tema não é novo e já foi bastante explorado em vários livros e filmes. Não obstante, Jiro Taniguchi dá-nos uma versão diferenciada e poética deste conceito da passagem do tempo que sempre atormentou a humanidade. Para tal, utiliza a personagem Hiroshi Nakahara como catalisador dos seus intentos filosóficos.
Nakahara é um homem de meia idade, casado e pai de família, que regressa inesperadamente ao seu tempo de adolescente, quando tinha 14 anos. A partir daí, reencontra antigos colegas de escola, amores da adolescência e a sua família. Mas o que é curioso é que, ao contrário de todos aqueles que o rodeiam, Nakahara tem perfeita noção de que é um homem em meia idade no corpo e vida de um adolescente. Como tal, nesta segunda oportunidade de uma experiência adolescente, vai agindo de forma diferente, pois tem consigo toda a bagagem e maturidade de um homem vivido. O que vai fazer com que o seu comportamento destoe face àquilo a que aqueles que o rodeiam estariam à espera. E, apenas e só por isso, vai acabar por remexer no natural desenvolvimento natural da sua primeira "vida". Se alteramos pequenas coisas no nosso passado, estamos a alterar o nosso futuro, certo?
O protagonista revisita vários momentos significativos da sua infância e adolescência, incluindo as suas relações com amigos e o seu primeiro amor. A narrativa explora temas como a nostalgia, a solidão e a passagem do tempo. A obra é, pois, um convite à introspecção, mostrando como o passado molda quem somos e como, muitas vezes, procuramo-nos reconectar com aquilo que fomos perdemos ao longo da nossa caminhada.
A habilidade de Jiro Taniguchi em entrelaçar narrativas pessoais com reflexões universais sobre a vida e sobre o tempo é um verdadeiro achado, através de uma abordagem sensível e contemplativa, que permite que os leitores se identifiquem com as experiências do protagonista, mesmo que, expetavelmente, as suas vidas sejam diferentes daquela que nos é dada por Taniguchi. Todos temos a nossa própria caminhada, mas também não deixa de ser verdade que a nossa caminhada tem muitos pontos em comum com a do próximo.
A obra destaca a fragilidade das conexões humanas e como elas podem dissipar-se ao longo do tempo, mas também sugere a possibilidade de redescoberta e reconciliação. O tempo é representado não apenas como uma sequência de eventos, mas como um agente que transforma a percepção de cada momento.
A história é muito bem pensada e muito bem desenvolvida, explorando várias nuances possíveis. Achei o tema do alcoolismo como algo um pouco forçado - e que distrai do tema principal - mas diria que isso é uma pequena queixa minha num álbum tão bonito e tão recomendável!
A arte ilustrativa de Taniguchi também é uma componente essencial da narrativa. O seu estilo é caracterizado por traços delicados e finos, e por um uso eficaz de sombras e luz, que ajudam a criar uma atmosfera melancólica e introspectiva. As ilustrações muitas vezes capturam a beleza do quotidiano, reforçando a ideia de que mesmo os momentos simples podem ter um profundo significado.
São-nos dadas algumas pranchas a cores onde fica claro que a obra teria sido ainda mais bela do ponto vista gráfico se tivesse sido lançada inteiramente a cores. Mas estamos a falar de uma obra mangá onde isso não é prática comum. O que é uma pena. Portanto, um aviso aos leitores mais incautos: se as imagens promocionais da obra aqui partilhada são a cores, a verdade é que são apenas a minoria desta obra que é, mais de 90%, a preto e branco.
A edição da Devir apresenta capa mole baça sem badanas, mas com uma sobrecapa que protege o livro, que também tem um formato maior face àquele mais utilizado pela editora na maior parte da sua oferta em mangá. No miolo, o livro apresenta papel decente e uma boa impressão e encadernação. É de louvar que a edição da Devir reúna num só volume, e de forma integral, os dois volumes em que a obra foi originalmente lançada.
Em suma, Bairro Distante é uma obra que transcende as barreiras culturais, ressoando com qualquer leitor que já tenha refletido sobre o seu próprio passado. A habilidade de Taniguchi em capturar a essência da experiência humana, aliada à sua estética visual, transforma esta obra numa meditação poética sobre a vida, sobre a memória e sobre o que significa realmente pertencer a um lugar. Se há obras completamente indicadas para que um leitor se possa iniciar no mangá, esta é uma delas!
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Bairro Distante
Autor: Jiro Taniguchi
Editora: Devir
Páginas: 421, a preto e branco (com algumas páginas a cores)
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Setembro de 2024
Hugo, sejamos honestos "papel decente" entre 70-80 gr não existe. O que a Devir apresenta aqui é um papel próxima de Bíblia, inadmissível numa obra de €25 e, muito menos, num autor com o estatuto de Jiro Taniguchi, autor que, por todos os motivos, deveria ter direito a uma edição cuidada. Lamentável a todos os títulos.
ResponderEliminarClaro que é papel decente. Em momento algum achei que estragava a edição. Não é espetacular, mas não acho tão mau assim. É decente. E parece-me bem superior a essa gramagem que refere. Embora agora não tenha aqui ao pé de mim o livro para confirmar.
Eliminar