Quando, no início deste ano, vos apresentei uma lista com as obras que mais expetativa me estavam a criar para 2024, Na Cabeça de Sherlock Holmes, de Cyril Lieron e Benoit Dahan, apareceu na segunda posição de uma lista de notáveis obras. Por algum motivo, eu sentia que este era um livro especial. Bem, por vários motivos, na verdade: pelas análises estrangeiras positivas da obra que já tinha lido, pelas pranchas do livro que eu já conhecia e pela premissa da história que tinha, quanto a mim, muito potencial.
Talvez por isso, e mesmo que me tenha custado fazê-lo, obriguei-me a esperar pela edição portuguesa da obra, já anunciada pelo esforço conjunto editorial d' A Seita e da Arte de Autor.
E agora que, há poucas semanas, este Na Cabeça de Sherlock Holmes foi lançado no Amadora BD - e já depois de o ter lido duas vezes de seguida - posso dizer-vos, agora a frio, que este é um dos vários livros da minha vida. Uma obra prima! Um livro que reinventa a banda desenhada. Que é inteligente, que é audaz, que é inventivo, que é criativo, que faz diferente. E que é distinto de tudo aquilo que já tenhamos lido - mesmo que já tenhamos lido muita banda desenhada.
O meu feeling de que este seria um livro especial estava, afinal de contas, certo. Apenas pecou por defeito. Pois achando que seria especial, não pude antever que fosse tão especial. Este é mesmo um daqueles livros que os muitos leitores do Vinheta 2020, a quem agradeço a confiança, podem comprar às cegas. Comprem-no hoje mesmo, peçam-no como prenda de natal, peçam-no emprestado, requisitem-no de uma biblioteca ou leiam-no à socapa numa FNAC... mas leiam-no. Repito: é uma obra prima da banda desenhada, algo que não podem deixar de ler.
Os responsáveis pela autoria de tamanho feito são os franceses Cyril Lieron e Benoit Dahan - que eram perfeitos desconhecidos para mim - que uniram esforços para criar uma história de investigação propícia aos poderes de dedução fantásticos do mais célebre detetive do mundo: Sherlock Holmes.
A história arranca sem grandes cerimónias, quando o Dr. Watson, o inolvidável companheiro de Sherlock Holmes, presta assistência médica a um outro amigo e colega de profissão, que aparece a contar uma história rocambolesca, aparentemente sem grande sentido, que o levou a perdas de memória, a uma clavícula deslocada e a estranhos acontecimentos. É-lhe encontrado um pó misterioso nas suas roupas, bem como um bilhete para um espetáculo exótico. São estes os ingredientes e a ignição para que, analisando o caso, Sherlock Holmes nos faça mergulhar num intrincado jogo de caça ao rato, uma investigação complexa que nos leva ao sabor da inteligência da personagem, trazida à vida pela própria inteligência da história e, especialmente, do enredo e da forma visual como tudo nos é oferecido.
Acho até que nem vale a pena escrever mais nada sobre a história. Porque parte da diversão da leitura deste livro é mesmo descobri-la. Não só "o quê", como acaba, mas também o "como", o caminho feito até que se desvende o mistério. Diria apenas que um aviso à navegação deve ser feito: este é um livro que dá muito ao leitor, mas que também exige algo do mesmo: uma leitura atenta. Como já referi, a história é complexa e, por vezes, o leitor poderá sentir-se assoberbado ou achar que há demasiada informação para absorver. E há. Mas tendo em conta o livro que temos em mãos, que procura fazer-nos mergulhar numa personagem tão perspicaz como Sherlock Holmes, é natural e até bem-vindo, diria, que o livro exija de nós alguma inteligência e atenção em troca. Porque se a investigação fosse mais simples ou mais linear, toda a premissa do livro seria mais superficial e, consequentemente, menos impactante.
A forma como os autores exploram o universo da banda desenhada é tão diferenciada que quase é justo afirmar que os mesmos criaram um subgénero dentro da própria BD, com algumas regras próprias. É, possivelmente, a planificação mais corajosa e inventiva que já pude encontrar num livro de banda desenhada. Dei-me ao trabalho de contar o número de páginas com uma planificação dita "mais clássica", com seis ou oito vinhetas retangulares por prancha, e sabem quantas páginas eu encontrei que respeitassem esse cânone? Zero. Em cada página há uma prancha que é diferente da anterior e da posterior.
Dahan faz-nos viajar por pranchas verdadeiramente complexas mas que - qual milagre da BD! - não só são muito belas na conceção do desenho, como conseguem fazer com que não nos percamos, mesmo tendo em conta a complexidade da investigação. Para tal, também conta a inteligente ferramenta visual que não é mais do que uma linha vermelha, que percorre todo o livro, de página a página, e que simboliza o próprio fio condutor das deduções de Sherlock Holmes. Sentimo-nos como se estivéssemos verdadeiramente dentro da cabeça do célebre detetive. Daí que o título da obra também seja muito feliz.
Por falar em ferramentas visuais, há tantos exemplos que o difícil mesmo é referi-las a todas. Mesmo assim, posso apenas assinalar que em várias vezes o leitor se vê compelido a colocar o seu livro contra a luz de um candeeiro, ou de uma janela, para ver o desenho oculto (!) que está naquela página; ou, noutros casos, é-lhe sugerido que dobre as folhas do livro (com cuidado, para não as deixar vincadas, digo eu) para encontrar algo que, à primeira vista, não estava lá. Magnífico, criativo, inovador, genial!
Note-se que, antes de ler o livro, e já sabendo de algumas destas ferramentas visuais interativas, tive algum receio que a obra se perdesse em demasia nestes artifícios, afastando-se do tema principal que é a história e a investigação decorrente. Mas em momento algum isso aconteceu. Há um enfoque total na trama e na narrativa e estes "stunts bedéfilos" procuram apenas servir a obra da melhor forma possível.
Também o desenho, propriamente dito, de traço caricatural e profundamente estilizado e moderno, captura muito bem a estética vitoriana, ao mesmo tempo que é rico e carregadíssimo de detalhes. A própria capa, assombrosamente bela (mesmo sem contar com o recorte na mesma) nos pede uma observação atenta. Mas esta riqueza de desenho não acontece apenas na capa. Espraia-se por todo livro, com cada vinheta a revelar-se cheia de detalhes e, em alguns casos, de informações que os olhares incautos poderão descurar. Nada parece ter sido deixado ao acaso neste livro e talvez também seja essa a razão da sua concepção magnífica. A própria paleta de cores, de tons a sépia, é perfeita para nos fazer sentir que estamos a ler um livro vintage, de época.
Em termos de edição, temos um trabalho notável das editoras A Seita e Arte de Autor. O livro apresenta capa dura com um recorte na mesma, no formato da cabeça da personagem Sherlock Holmes, o que não só dá um aspeto diferenciado e original à capa do livro, como tem o significado adjacente de ser um convite para que entremos literalmente dentro da cabeça de Sherlock Holmes. Um verdadeiro "rebuçado".
E não é só isto que torna a edição boa. O papel baço utilizado é de excelente qualidade e a impressão e encadernação são impecáveis. No final, ainda é incluído um pequeno caderno de extras com quatro belíssimas ilustrações que não aparecem na edição original da obra, o que é prova do esforço conjunto d' A Seita e da Arte de Autor para uma edição especial. A própria opção por lançar a obra enquanto um volume integral que, relembro, originalmente tinha sido lançada enquanto díptico, com dois volumes, foi bastante acertada.
Do ponto de vista editorial, poderemos apenas objetar que entre a altura em que o livro foi primeiramente anunciado, para o início de 2023, até ao momento em que, finalmente, foi efetivamente editado, passou demasiado tempo. Sei que nós, leitores, não gostamos de esperar, mas, lá está, vale mais esperar um pouco mais se isso for a garantia de que a obra chegará mesmo até nós e numa bela edição. E foi exatamente isso que aconteceu.
Em suma, Na Cabeça de Sherlock Holmes parece ser um festim de criatividade em esteroides. É diferente de tudo o que já lemos em banda desenhada e tem um charme irresistível, que revela que os limites da banda desenhada enquanto género estão longe de estarem encontrados. "Porno para admiradores de banda desenhada", poderia ser o seu subtítulo. Ainda tenho muita coisa para ler que também aparenta ter enorme qualidade, mas é bem provável que a minha premiação mental para melhor BD do ano, publicada em Portugal, fique agora atribuída. Numa palavra: imperdível!
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Na Cabeça de Sherlock Holmes
Autores: Cyril Lieron e Benoit Dahan
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 104 páginas, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2024
Muito ansioso para ler este livro, e com esta análise, ainda mais. Já agora, está para breve uma análise de "Shi", da Ala dos Livros? Estas são as minhas duas BD mais aguardadas deste ano (curiosamente, passam-se ambos na Inglaterra Victoriana), mas gostaria de saber se "Shi" também vale a pena. :)
ResponderEliminarObrigado pelo comentário, MS. Sim, posso dizer que já li "Shi" e é totalmente recomendável. Será analisado aqui no Vinheta 2020 brevemente. :)
EliminarViva Hugo. Apenas uma nota e como informação adicional: o termo correcto é vazamento, ou seja subtração á mancha principal de área pré-definida através de cortante especial. Outra nota (negativa) para o péssimo trabalho de balonagem e adaptação de notas e inscrições manuscritas ao longo da obra (quem puder, compare com o original). O original é uma obra prima de desenho de letra manuscrito totalmente assassinado pelo "adaptador" local. Insisto, as editoras nacionais têm de dedicar mais atenção a este aspecto essencial de qualquer obra de BD.
ResponderEliminarInfelizmente, as vendas em Portugal não permitem que se faça legendagem manual nas BDs cá editadas, e temos sempre de nos socorrer das legendagens digitais, que terão sempre as suas limitações. Penso até (posso estar enganado) que já não há ninguém em Portugal que faça legendagem manual, a última pessoa com quem ainda trabalhei pontualmente num ou noutro livro (para trechos legendados à mão, nunca para livros inteiros) foi a Xana Magno, mas deixou de legendar há muito.
EliminarJosé de Freitas (A Seita)
Caro José Freitas, talvez não me tenha feito entender mas referia-me, essencialmente e como diz, a trechos no livro (ex: na capa...) onde deveria haver uma pouco mais de cuidado na reprodução e adaptação da arte original - não faltarão ilustradores e desenhadores aptos para tal no nosso mercado. Quanto á balonagem e em situações onde o original é difícil de replicar (porque se trata de letra manuscrita) recorrer a tipos gráficos digitais (fontes) é uma opção - existem milhares no mercado. Mas aqui a tarefa de selecionar e escolher o tipo correcto deverá, também, ser cuidadosa e feito, se possível, por alguém habituado a lidar com trabalhos tipográficos (designers gráficos, paginadores...), coisa que raramente testemunho. Outra opção (a mais correcta) poderia passar pela digitalização da caligrafia original e transformá-la em tipo digital (fonte). O cuidado e interesse colocados nestes aspectos facilmente iriam relectir-se numa leitura mais fluida e respeitadora da arte original.
EliminarRealmente, a capa da nossa edição está muito infeliz. Até os ponteiros no Big Ben estão diferentes.
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