Junji Ito é um dos nomes mais reconhecidos do horror japonês, e Uzumaki é uma das suas obras mais icónicas. Se não for mesmo a mais icónica. E é bom ver que a editora Devir, que este ano está com um excelente ritmo de publicação de banda desenhada para um público mais adulto, publica durante este mês de Março esta obra obrigatória para quem é fã de BD de horror e de Junji Ito, em particular!
Publicada originalmente em capítulos, esta série de mangá que é agora editada de forma integral, oferece-nos uma história que se passa na cidade fictícia de Kurouzu, um local assombrado por um fenómeno que tem tanto de inusitado como de inexplicável: subitamente, começam a aparecer manifestações sobrenaturais com a forma de uma espiral. Sim, leram bem, a forma de uma espiral. Se há temas que não me parecem, a priori, assustadores, são as espirais. Contudo, de alguma forma, Junji Ito consegue fazer com que esta premissa funcione bem para nos dar uma das suas melhores histórias.
O enredo segue Kirie Goshima e o seu namorado, Shuichi Saito, enquanto tentam sobreviver ao crescente horror que devora a cidade. Tudo começa quando o pai de Shuichi passa a ficar obcecado com as formas espirais. Parece um acontecimento isolado, mas logo as espirais começam a afetar tudo o que acontece na cidade. Várias pessoas morrem e, quando cremadas, o fumo que sai do crematório tem a forma de espirais. O próprio vento sopra na forma de uma espiral, os cabelos de algumas personagens enrolam-se sozinhos em espirais... enfim, tudo parece consumido pelo estranho fenómeno.
O elemento central de Uzumaki é, portanto, a sua abordagem de terror cósmico e psicológico. Ao invés de um monstro tradicional ou de um vilão claramente definido, o inimigo aqui é a própria espiral, um conceito abstrato que corrompe corpos e mentes. Junji Ito constrói o medo de maneira gradual, apresentando eventos inicialmente estranhos, mas não totalmente alarmantes, como a obsessão do pai de Shuichi por padrões espirais. No entanto, conforme a história avança, a presença da espiral torna-se cada vez mais sinistra com a escala dos acontecimentos a ser cada vez maior.
Outro aspecto notável da obra, é a forma como Ito explora o terror da inevitabilidade. Diferente de muitas narrativas de horror em que os protagonistas podem escapar ou derrotar a ameaça, Uzumaki enfatiza a impotência das personagens diante do destino. O clímax da obra mergulha totalmente no surreal e no apocalíptico, com o final a ficar longe de uma resolução clara, o que reforça o caráter inevitável da tragédia. Não há, portanto, uma explicação definitiva para os eventos, algo característico no estilo de Junji Ito, que prefere deixar o mistério e o horror persistirem na mente do leitor. Esse desfecho contribui para a sensação de desconforto e fascínio que permeia toda a narrativa.
Há uma coisa que não aprecio especialmente nas obras de Junji Ito que já tive a oportunidade de ler e que, embora também aconteça neste Uzumaki, aparece feito de uma forma que me parece mais bem conseguida: há uma maior fluidez orgânica entre capítulos do que aquilo a que estamos habituados. No fundo, a maior parte dos mangás do autor não seguem uma linha concreta de uma história com princípio, meio e fim, mas sim são pequenos capítulos que, afetos a um mesmo tema, são depois agrupados. Por exemplo, em Tomie, temos a premissa da personagem principal que cativa homens e mulheres com a sua beleza para depois lhes desferir finais aterrorizantes. No entanto, não há ali uma história propriamente dita. Apenas mini histórias, divididas por capítulos, subjacentes a um mesmo tema. Em Uzumaki também é esse o modo de trabalho do autor, sim, mas neste caso há uma maior orgânica entre capítulos, pois verifica-se um crescendo na forma como o fenómeno das espirais está a tomar conta da cidade, até um desenlace final sob a forma de uma apoteose narrativa. Continua a ser uma obra dividida por capítulos, que podem ser lidos de forma isolada, mas neste caso há um maior fio condutor entre esses capítulos que culmina numa história conjunta mais bem explanada. Gosto mais desta opção.
A arte das ilustrações detalhadas de Junji Ito é, naturalmente, e sem surpresa, um dos pontos mais impressionantes desta obra. Os desenhos minuciosos do autor conseguem captar expressões de terror absoluto e transmitem uma sensação visceral de desconforto que passa para o leitor, que nunca se sente muito sereno ao longo da leitura desta enorme obra com mais de 600 páginas. Os contrastes de luz e sombra utilizados pelo autor para criar uma atmosfera opressiva, bem como as suas ilustrações de transformações corporais grotescas – um de seus traços mais característicos – tornam a experiência ainda mais angustiante. Algumas das imagens mais memoráveis incluem corpos contorcidos em espirais impossíveis e padrões que se manifestam na própria carne das vítimas. É um trabalho original, diferente e, sem dúvida, impactante.
A edição da Devir, bem ao jeito da sua Coleção Tsuru, apresenta capa mole e sobrecapa. Sendo uma opinião muito pessoal - e portanto subjetiva - teria apreciado mais se a capa apresentasse a imagem em tons negros que conhecemos de edições estrangeiras. Mas, bem, também compreendo que talvez este grafismo encaixe melhor na homogeneidade de capas da Coleção Tsuru da Devir. De resto, o livro apresenta o papel a que a editora nos tem habituado que, não sendo mau, tem mais transparência do que o desejável, deixando ver as ilustrações do outro lado da mesma página. A encadernação e a impressão apresentam boa qualidade.
No final da obra, encontramos ainda os muito interessantes textos de apoio escritos por Artur Coelho e por Masaru Sato que permitem a uma bela teorização do método de terror que Junji Ito apresenta nesta obra.
Em suma, Uzumaki é um dos trabalhos mais marcantes do terror japonês em mangá, combinando uma premissa única com uma execução magistral. A obra destaca-se não apenas pelo horror visual, mas também pela sua atmosfera sufocante e pela exploração de temas existenciais e psicológicos, demonstrando a genialidade do autor ao conseguir transformar um simples padrão geométrico num símbolo de terror absoluto. Se já ouviram falar no trabalho de Junji Ito e ainda não leram nenhum dos seus livros, é com este que se devem iniciar!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Uzumaki
Autor: Junji Ito
Editora: Devir
Páginas: 668, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Março de 2025
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