Depois de a Devir editar Batman - Três Jokers, o seu primeiro livro de 2025 oriundo do selo Black Label, da editora americana DC Comics, chegou-nos mais recentemente Corpos, que tem argumento de Si Spencer e conta com as ilustrações de Dean Ormston, Tula Lotay, Meghan Hetrick e Phil Winslade, e cores de Lee Loughridge.
Corpos é uma obra especial, que há muito queria ler - que até já teve direito a adaptação para série televisiva da Netflix - e que se destaca pela sua estrutura narrativa engenhosa e ambiciosa, ao apresentar quatro linhas temporais distintas - 1890, 1940, 2014 e 2050 -, mas que nos surgem interligadas por um único mistério: o aparecimento do mesmo cadáver em cada uma dessas épocas. Esta premissa inicial, ao mesmo tempo estranha e fascinante, estabelece de imediato um tom de mistério e profundidade que guia toda a narrativa.
Nesse sentido, até diria mesmo que o verdadeiro trunfo de Corpos está no modo como a obra lida com a passagem do tempo, pois cada época representa não apenas um estilo gráfico distinto, ilustrado por um desenhador diferente, mas também um conjunto temático e político específico. Londres é o pano de fundo constante, mas é interessante ver como a cidade se transforma radicalmente consoante o tempo e os olhos que a observam. Assim, logo à partida, a obra (também) é um comentário sobre a evolução (ou regressão) social, moral e tecnológica da civilização ocidental.
Embora em cada uma das diferentes linhas temporais surja o mesmo corpo, assassinado da mesma forma, cada período de tempo apresenta-nos o seu próprio detetive: o misterioso detetive Edmond Hillinghead (1890), o inspetor de passado dúbio Charles Whiteman (1940), a jovem polícia Shahara Hasan (2014) e Maplewood, uma misteriosa mulher num futuro distópico (2050). Estas personagens não conduzem simplesmente a narrativa, mas também refletem diferentes aspetos do género policial - desde o noir até ao cyberpunk - oferecendo variações estilísticas que mantêm o leitor intelectualmente estimulado.
A narrativa de Si Spencer é deliberadamente fragmentada e complexa. Há momentos em que a leitura exige concentração e releitura, sobretudo quando, lá mais para a frente, os quatro arcos se entrelaçam em camadas simbólicas e narrativas. O uso de repetições e frases-chave em múltiplas épocas convida a um aumento do interesse do leitor, sugerindo que as linhas do tempo não são paralelas, mas ressonantes - como ecos que se respondem mutuamente através do tempo.
Que o passado influencia o presente, e este influencia o futuro, já todos nós sabemos... mas pode o futuro influenciar o presente ou mesmo o passado?
Também a representação da diversidade é um elemento forte e demarcadamente assumido na obra. Que é, aliás, visível na presença de personagens que, de algum modo, desafiam a convenção social do período em que vivem. Consequentemente, encontramos uma mulher muçulmana, um polícia que parece defender as suas principais causas políticas, um detetive que reprime a sua homossexualidade e uma figura feminina misteriosa do futuro. Si Spencer trata estas identidades não como adereços, mas como peças fundamentais da narrativa e do comentário social para cada uma das épocas. O puritanismo e a corrupção policial do século XIX; o fascismo e o encobrimento no pós-guerra; a radicalização religiosa e a xenofobia na contemporaneidade; e a alienação extrema num futuro controlado e desumanizado — todos estes elementos mostram como certos fantasmas persistem em diferentes roupagens ao longo da história.
Confesso que, à medida que a trama foi avançando, me pareceram algo rebuscadas certas opções de enredo por parte do argumentista, fazendo com que a "cola" que une todas as histórias, bem como o mistério a envolver o(s) corpo(s) encontrado(s), se apresentassem um pouco periclitantes e forçados. A parte futurística, aquela que se passa em 2050, também não ajudou para essa minha sensação menos positiva, já que esta componente da história me pareceu mais uma divagação narrativa do que algo com mais substância.
Mesmo assim, gostei da megalomania dos intentos narrativos desta obra que, no final, nos dá uma conclusão aberta e simbólica, oferecendo uma certa resolução factual do mistério do corpo, é certo, mas apostando mais no impacto filosófico do que numa resposta concreta. A ideia de que o tempo é maleável, e que as ações humanas reverberam para além da sua época, torna-se, pelo menos quanto a mim, o verdadeiro clímax temático da obra.
Naturalmente, as ilustrações desempenham aqui um papel fundamental na diferenciação temporal. Cada ilustrador imprime uma identidade visual única à sua secção, indo ao encontro do ambiente social e emocional do respetivo arco. O contraste entre os tons sépia do século XIX e a paleta vibrante e sintética do futuro cria um dinamismo visual que sublinha a ambição (também) estética da obra. A ilustração de Corpos não é, pois, meramente ilustrativa, mas parte integrante da construção do significado.
Todos os ilustradores fizeram um trabalho notável, com a minha preferência a recair nas ilustrações de Dean Ormston, para a época vitoriana de 1890. Já as ilustrações futuristas, referentes ao ano de 2050, da autoria de Tula Lotay, foram as que menos me agradaram. Mas reconheço que todos os ilustradores dão um bom contributo para o todo.
O trabalho de cores de Lee Loughridge também merece comentário, por ser tão bem conseguido na diferenciação das diferentes épocas e por atribuir um charme cromático especial a cada uma dessas distintas linhas temporais.
A edição da Devir é em capa dura baça, com bom papel brilhante no interior do livro e uma impressão e encadernção de boa qualidade. No final, enquanto conteúdo extra, encontramos cinco páginas com esboços de cada um dos autores.
Em suma, Corpos é uma banda desenhada diferenciada e ambiciosa que desafia o leitor a ver o tempo, a identidade e a justiça sob novas perspetivas. Com uma estrutura complexa, visualmente rica e ideologicamente densa, a obra de Si Spencer é um exemplo notável de como a banda desenhada pode explorar questões profundas sem sacrificar o entretenimento. É, simultaneamente, um mistério policial, uma crítica social e uma meditação existencial — e nesse equilíbrio reside a força deste Corpos.
NOTA FINAL (1/10):
8.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Corpos
Autores: Si Spencer, Dean Ormston, Phil Winslade, Meghan Hetrick, Tula Lotay e Lee Loughridge
Editora: Devir
Páginas: 208, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Abril de 2025
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