Foi na passada sexta-feira, de manhã bem cedo, que tive a oportunidade de entrevistar uma das autoras mais badaladas da banda desenhada europeia da atualidade e que, recentemente, viu duas das suas obras mais emblemáticas - Dias de Areia e O Deus das Moscas - serem editadas em Portugal pelas mãos da editora ASA.
Falo da autora holandesa Aimée de Jongh que esteve em Portugal para apresentar o seu livro no Amadora BD.
Esta muito especial e intimista conversa decorreu no belo espaço da Livraria Buchholz, em Lisboa, e só foi possível devido à gentileza da equipa ASA e do seu generoso convite para que eu entrevistasse Aimée. Agradeço, pois, a toda a equipa pela oportunidade!
Nesta conversa, Aimée revelou ser uma pessoa absolutamente simpática e interessante, sempre com um sorriso nos lábios e genuína vontade de conversar. E falámos sobre diversos temas que, acredito, transformaram esta conversa em algo muito cativante.
Sem mais demoras, eis a conversa que tive com esta fabulosa autora:
Entrevista com Aimée de Jongh
Aimée, antes de mais, é para mim um prazer conhecer-te. Sou um grande fã do teu trabalho! Gostaria de começar por falar sobre como foi adaptar uma obra tão emblemática como O Deus das Moscas. Existe alguma responsabilidade extra quando se adapta um livro tão importante para a literatura mundial como este?
Sim, foi muito assustador! (risos) Porque sabia, desde o início, que é um clássico da literatura e que, portanto, as pessoas já conhecem bem o livro ou os filmes. Há duas adaptações para filme feitas antes. Por isso, para mim esta foi a primeira vez em que o público, ao ler o livro, já tinha uma ideia do que o mesmo tratava, podendo fazer comparações. Por exemplo, em relação a Dias de Areia, as pessoas não têm nada com que o comparar, por isso, começam a ler em branco e é o livro que as surpreende. Neste O Deus das Moscas, pensei em cortar algumas cenas de que não gostava, mas depois lembrei-me de que as pessoas estariam à espera dessas cenas por serem cenas clássicas da história. Portanto, sim, foi um processo muito, muito assustador, porque tive de agradar não só a mim própria, mas também ao leitor. E o leitor conhece bem a história. Tinha medo de cometer erros e que talvez as pessoas me escrevessem cartas zangadas a dizer coisas como “Porque não puseste isto? Porque não usaste isto? Porque é que mudaste aquilo?”
Mas agora que o livro está pronto, qual tem sido a reação do público e da crítica?
Tem sido bastante positiva! Por isso, não havia razão para ter medo. (risos) Acho que isso é o resultado de me ter mantido muito próxima do romance original e por ter optado por não "enlouquecer", isto é, por não tomar direções estranhas na história. Foi também por isso que, mesmo em termos de organização de história, considerei que deveria manter-me fiel ao romance original, preservando os mesmos capítulos, de forma a que ninguém ficasse zangado. (risos) Todas as reações estão a ser muito positivas, por isso estou feliz.
Vê-se que conheces muito bem o romance original. Suponho que és uma fã enquanto leitora. E dos filmes também. Viste-os?
Sim, acho que tens razão, pode dizer-se que sou fã. Os filmes já vi há muito tempo e não estão muito presentes, mas o romance já li muitas, muitas vezes. E mesmo antes de iniciar a adaptação. Por isso, sim, sou uma grande fã. A dificuldade para mim foi transformar o texto original em banda desenhada que, naturalmente, não tinha sido concebido para tal.
Pois, foi escrito noutra época...
Sim, foi escrito nos anos cinquenta. Quando se trabalha com um argumentista de banda desenhada, ele já sabe que o texto vai ser para uma banda desenhada, por isso fazem-se certas escolhas para que os desenhos contem a história. Mas, no caso de O Deus das Moscas, o livro não foi concebido para ser uma banda desenhada. Assim, o texto é muito literário, por vezes muito longo, com longas discussões e conversas. E isso não funciona numa banda desenhada porque se torna aborrecido. Por esse motivo, tive de usar algo como "uma faca" e cortar as cenas de modo a fazê-las funcionar bem em banda desenhada. Essa deve ter sido a maior dificuldade.
Já tive a oportunidade de ler o livro e escrever sobre ele. E posso dizer que uma das coisas de que mais gostei - para além dos belos desenhos, claro - foi o ritmo pausado da história, que permite que as emoções das personagens se intensifiquem. Foi um aspeto a que prestaste especial atenção?
Em relação ao ritmo mais pausado, isso está relacionado com a minha formação em cinema e em animação. Estudei animação e fiz filmes de animação, por isso o meu ritmo é sempre muito cinematográfico. É como se a banda desenhada fosse um filme em papel. E acho que é por isso que flui tão bem. E mesmo se olharmos para algumas vinhetas, percebemos que as que mais utilizo são aquelas que parecem ter o formato de um ecrã. Por vezes, até tenho mesmo de me esforçar para colocar uma vinheta em formato vertical, para não haver um excesso de imagens horizontais. Mas é porque estou habituada a pensar dessa forma, como se o ecrã fosse a minha moldura. Por isso, acho que o ritmo é muito cinematográfico. E é um pouco diferente da maioria das bandas desenhadas, mas eu gosto disso. (risos)
Eu também! (risos)
Ok, ótimo! (risos)
Fala-nos um pouco sobre as técnicas artísticas que usas para criar os teus livros. Utilizas o teu computador e/ou tablet ou desenhas em papel?
Posso mostrar-te um pouco do processo... [apontando para o storyboard incluído no final do livro O Deus das Moscas] As primeiras partes são sempre feitas em papel, porque gosto muito do toque da tinta no papel. Começo com esboços rudimentares, onde apenas utilizo uma caneta antes de colorir os desenhos a aguarela. As aguarelas servem para me mostrar o ambiente. Tomemos esta cena como exemplo. A cena termina e entramos noutra. Por isso, há uma alteração de cor de uma cena para outra. E assim consigo ver rapidamente quanto tempo é que a cena demora. Talvez seja demasiado longa, talvez seja demasiado curta. Tudo isto é feito em papel e gosto muito desta fase. O processo seguinte é a aplicação da tinta a preto sobre o papel. Os desenhos que vês são todos feitos em papel. Depois digitalizo-os e aplico digitalmente todas as cores. Gosto de utilizar efeitos do estilo das aguarelas, mas faço-o através de uma técnica de cor digital. Às vezes, as pessoas pensam que eu pinto em papel, mas a verdade é que são cores digitais.
Quanto tempo é que demoras a fazer este processo do storyboard?
Essa é uma boa pergunta! Acho que demoro um par de meses. Talvez uns quatro ou cinco meses. Começo com demasiadas páginas, sempre demasiadas, demasiadas, demasiadas.... E depois tenho que as encurtar, mas acho que, tudo somado, este processo demora uns cinco meses.
Mencionaste o volumoso número de páginas deste livro e uma coisa que achei interessante neste O Deus das Moscas é que a novela gráfica acaba por ter mais páginas do que o livro original de William Golding...
Isso é verdade. (risos)
... O que não é muito comum em adaptações de banda desenhada. Quando começaste o projeto, já tinhas uma ideia do número de páginas, sabendo que seria algo grande, ou o teu sentimento foi mais do género: "Bem, vou continuar a trabalhar à minha maneira, com uma página a seguir à outra e, em relação ao número de páginas, a editora que se encarregue disso" (risos)
(risos) Um pouco das duas opções. Acho que a minha intenção inicial era que o meu livro ficasse do mesmo tamanho do livro original, mas rapidamente percebi que isso seria impossível, porque uso muitas páginas sem qualquer texto. Porque o ritmo precisaria de ser mais lento.
Cá estamos nós a falar do “ritmo”, novamente.
Sim, gosto do ritmo mais pausado, mas isso também significa que são necessárias muito mais pranchas. Por esse motivo, no final era inevitável que iria precisar de mais páginas do que o livro original, porque se tiver uma imagem grande sem texto, já são duas páginas. Se o fizer noutro momento da narrativa, já são mais duas páginas. E assim, muito rapidamente, acumulamos muitas páginas. Mas não acho que seja uma coisa má. Tento adaptar-me àquilo que a história está a pedir.
Um dos "problemas" que nós, leitores de banda desenhada, temos, é que as leituras ocorrem demasiadamente rápido. Como tal, considero muito bom quando alguma obra nos permite, ou nos sugere, que tiremos algum tempo para apreciar bem o trabalho e mergulhar mais profundamente na obra.
Exatamente! E fico contente por também gostares de um ritmo lento.
Esta é a tua primeira adaptação de um livro clássico. No futuro, podemos esperar mais adaptações de obras da literatura? Estás a pensar nisso?
Neste momento, não. Quer dizer, por agora estou a planear o meu próximo livro que vai ser uma história original minha, mas quem sabe? Além de que, de momento, não me ocorre nenhum livro que gostasse de adaptar. Mas nunca digas nunca! (risos)
Falando agora de Dias de Areia, o livro foi publicado originalmente em 2021 e ganhou vários prémios e nomeações. Além de que a crítica e os leitores gostaram muito. Agora, foi recentemente publicado em Portugal. Achas que é uma obra que ainda tem espaço para chegar a cada vez mais pessoas, pelo seu conteúdo e pela sua história? Por outras palavras, achas que este é um livro que, mesmo já tendo três anos, mantém a sua relevância intacta?
Essa é uma boa pergunta! Não pensei nisso porque, para mim, esta é uma história muito intemporal. Passa-se nos anos 30, por isso, acho que é indiferente que saia em 2021 ou em 2024. É um livro histórico, embora tenha referências às alterações climáticas que estamos a atravessar neste momento. De certa forma, ainda não resolvemos o problema.
Era essa a minha próxima pergunta! (risos) Há alguns avisos do foro climático neste livro. Por isso, apesar de retratar um acontecimento histórico, o Dust Bowl, diria que a questão ambiental que a obra levanta nunca fez tanto sentido como nos dias de hoje, pois continuamos a ter cada vez mais problemas com as alterações climáticas. Talvez nos próximos dois anos estejamos a enfrentar mais problemas. Depois, nos próximos 10 anos, talvez enfrentemos ainda mais problemas. E assim por diante. Por isso, a história é ainda mais relevante neste momento. Pensaste nisso quando estavas a preparar o livro?
Sim, claro. Na altura em que estava a desenhar as paisagens só com areia e pó, e com as ondas de calor, se depois, à noite, assistisse ao noticiário na televisão, era confrontada com as mesmas imagens a acontecer em África ou nos países árabes, onde há tempestades de areia e intensa seca. É impossível não ver o paralelo. Por isso, sim, estava sempre a pensar nisso.
E como é que uma autora europeia como tu, acaba a fazer um livro sobre um tema tão americano como o Dust Bowl? Como é que decidiste fazer este livro e como é que o tema te chegou às mãos?
Isto aconteceu há muitos anos. Deparei-me com algumas fotografias a preto e branco dessa época do Dust Bowl e guardei-as no meu computador. Tenho uma pasta no computador a que chamo "pasta de inspiração" para olhar para ela caso não saiba o que fazer a seguir. (risos) Portanto, as fotografias estiveram nessa pasta durante bastante tempo. Eu sabia que queria fazer alguma coisa com o Dust Bowl, mas não sabia o quê. Depois lembro-me de ir a uma exposição em Paris que era sobre um fotógrafo do tempo do Dust Bowl. E então as duas coisas fizeram clique e pensei: “Bem, se eu fizer uma história sobre um fotógrafo, posso inseri-lo no período do Dust Bowl para fazer as suas fotografias”. Acho que, entre as duas coisas, decorreram talvez uns sete anos. Foi realmente muito tempo, mas às vezes é preciso esperar algum tempo para que algo faça realmente sentido. Depois, propus o projeto à minha editora e eles gostaram muito. E, na verdade, como sou europeia, acho que tenho mais distância perante o tema e isso permite que eu consiga vê-lo de um ângulo diferente.
Sim. Estive nos Estados Unidos a fazer investigação em Oklahoma. E quando fui para lá, as pessoas perguntaram-me: “Porque é que queres fazer um livro sobre o Dust Bowl? Já toda a gente conhece o tema!” E eu disse: “Não, na Europa, ninguém conhece”. É algo que as pessoas não conhecem. Por isso, era uma forma de apresentar o tema aos europeus. Depois disto, toda a gente ficou muito entusiasmada por falar sobre o assunto. Nos Estados Unidos, quando andamos na escola, temos aulas de história onde este assunto é abordado, mas aqui, na Europa, é diferente.
Já fizeste livros com outros autores conhecidos, mas - creio que posso dizer isto - as tuas obras mais sonantes têm sido aquelas em que escreves e desenhas, como "autora completa", por assim dizer. Sentes-te mais confortável a trabalhar sozinha ou em parceria?
Na verdade, gosto de ambas as formas de trabalhar. O que me agrada em trabalhar com outra pessoa é o facto de poder trabalhar com outro cérebro, com outra mente, e não apenas comigo própria. Tenho os meus próprios interesses e as minhas próprias influências, mas é muito interessante trabalhar com alguém que tem uma vida muito diferente e talvez uma idade diferente, um género diferente e uma abordagem diferente a tudo: à história, às ideias, aos pontos de vista. Por isso, mesmo que talvez não sejam os livros mais sonantes, considero que foi muito divertido fazer livros em parceria criativa.
Bem, eu adorei o livro que fizeste com o Zidrou [L'Obsolescence programmée de nos sentiments], mas também sou um grande fã do Zidrou...
Sim, esse livro continua a ser um dos meus preferidos, porque é uma história que eu nunca seria capaz de escrever, porque não tenho essa idade e era um tema que não me tinha interessado até então. Por isso, fiquei muito contente por trabalhar com o Zidrou nesta obra, porque de outra forma nunca teria feito esse livro.
Enquanto jovem autora, o teu trabalho já recebeu elogios em todo o mundo. E muitos consideram-te, incluindo eu próprio, como uma das autoras mais influentes e relevantes da banda desenhada atual.
A sério?
Sim. E não estou a dizer isto só para ser simpático. É o que acho e parece-me que não estou sozinho nesta opinião.
Uau!
Achas que esta reverência pode colocar-te sob algum tipo de pressão? Achas que o teu público e os críticos vão esperar mais do próximo livro ou não pensas nisso e fazes apenas o que te apetece?
Eu não sinto essa pressão, mas a minha editora talvez sinta! (risos) Faço sempre os livros que quero ler. Quero fazer um livro que, se eu entrasse numa loja de banda desenhada e pegasse nele, me fizesse gostar dele. E não é que os meus livros sejam necessariamente direcionados a um público alargado, mas, por acaso ou por coincidência, aparentemente são. Contudo, na minha cabeça, estou sempre a fazer o livro como se fosse só para mim. E a minha editora sente mais pressão porque sabe que precisa de manter as vendas em alta para vender o livro, mas esse é o trabalho deles. E eu estou apenas a tentar fazer um livro de que gosto, não estou a tentar ser mais comercial ou a tentar ver o que é que o leitor quer e depois dizer: “Ok, é isso que vou fazer”.
Por favor, não faças isso! (risos)
Não! Acho que até agora estou bem. Se, por enquanto, sinto demasiada pressão? Não.
Em apenas três meses, dois dos teus livros foram publicados pela primeira vez em Portugal. Podes confirmar (ou não) se há planos para publicar outras obras tuas em Portugal?
Bem, ainda há alguns livros que não foram publicados... os livros publicados antes de Dias de Areia e de O Deus das Moscas.
Sim, estou a referir-me a esses mesmo. Porque já dou como garantido que os que venham a sair no futuro sejam publicados em Portugal. (risos) Mas estou a referir-me a esses mesmo que foram lançados antes destes dois.
Sim, espero que sim. Quer dizer, amanhã vou jantar com o meu editor, por isso vou perguntar-lhe. (risos) Mas, para mim, seria ótimo, porque sei de muitas pessoas que gostariam de o ler e, na verdade, no Brasil estes livros já se encontram publicados. Sei que a língua não é totalmente igual nos dois países, mas acho que é um bom sinal. E que mostra que as pessoas também gostam dos outros livros. E, já agora, o livro que fiz com o Zidrou é um grande sucesso no Brasil. Por isso, só posso esperar que o mesmo aconteça aqui.
Aproximando-nos do fim da nossa conversa, e mesmo sabendo que já tocaste ao de leve neste assunto, gostaria que falasses um pouco sobre o novo projeto de livro em que te encontras a trabalhar.
Posso falar-te um pouco sobre o livro, mas ainda não comecei mesmo a fazê-lo. Ainda estou a fazer pesquisa. Basicamente, vai ser sobre os refugiados na Europa. Os refugiados que vêm dos países árabes e de África, principalmente através da Grécia e de Itália, e que acabam por chegar à Europa.
Sim. Passa-se no presente e é um tema que me interessa muito, pois acho que é importante não esquecermos que há pessoas que vêm todos os dias à procura de uma vida melhor na Europa. E, basicamente, junto às fronteiras da Europa, acontecem-lhes muitas coisas más - coisas ilegais - e ninguém fala sobre isso. E eu, enquanto europeia, e tenho a certeza que tu, enquanto europeu, somos todos contra a violação dos direitos humanos.
Sim, podes colocar o meu nome nisso.
Então, porque é que nós, enquanto sociedade, não falamos sobre o tema? Este é talvez o meu livro mais político, mas acho que depois de um livro escrito nos anos 50 e outro ambientado na década de 30, está na altura de falar de temas contemporâneos.
Achas que os autores de banda desenhada podem falar a favor das pessoas mais necessitadas, como os imigrantes, por exemplo? As vossas palavras podem ter eco nos meios de comunicação social?
Sim, penso que sim. Quer dizer, não sei a quantas pessoas vou chegar, mas mesmo que só chegue a um grupo pequeno, fico muito contente por lembrar essas pessoas de que isto está a acontecer. Por isso, mesmo que sejam apenas dez pessoas que digam: “Oh, não sabia que isto estava a acontecer”, já ficarei feliz.
Boa sorte para o teu novo projeto. Foi muito, muito bom para mim conhecer-te.
O prazer foi meu. Obrigada! Ótimas perguntas.
Fotografias: Bob Bruyn
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