Hoje trago-vos uma dose tripla de um autor brasileiro que muito aprecio e cuja obra tem vindo a ser editada em Portugal pela editora Polvo, mas que, com alguma pena minha, não tem recebido o destaque e o louvor que, quanto a mim, lhe é devido.
Falo-vos de Alcimar Frazão que, com uma obra marcada por um traço visual inconfundível e uma escrita densa e poética, se tem vindo a afirmar como uma das vozes mais singulares da banda desenhada contemporânea do Brasil. Por cá, a Polvo já editou O Diabo e Eu, Cadafalso e, mais recentemente, Lovistori.
Comecemos por este último.
Lovistori, com argumento de Lobo, narra uma história de amor que se desenrola nas ruas de Copacabana entre um travesti e um polícia. É uma história em género slice of life que nos coloca no turbilhão de sentimentos que envolve as personagens Sereia e Paixão, num relacionamento amoroso que, aos olhos de muitos, e possivelmente dos próprios protagonistas, tem muito de condenável. Sereia e Paixão tentam, como podem, fazer o seu amor e a sua paixão resistir a barreiras que parecem demasiado altas para serem ultrapassadas. Abordando os temas da transfobia, do preconceito e da violência de que é alvo a comunidade LGBTQI+ no Brasil atual, este é um livro de forte impacto, com alguma violência à mistura, que desafia o leitor a uma reflexão sobre os temas aqui presentes. Reflexão essa que não é demasiado politizada, o que me agradou. A narrativa, aparentemente simples, esconde camadas emocionais profundas e uma crítica subtil à banalização das relações humanas e da aceitação do outro. Dos três livros, é este o meu preferido - embora também tenha gostado muito de O Diabo e Eu.
Em Cadafalso, Alcimar Frazão oferece-nos um conjunto de histórias curtas, em que os temas e as abordagens diferem bastante entre si, embora quase todas estas histórias curtas nos apresentem uma realidade algo sombria e triste que é, como expectável, sublinhada pela bela utilização dos tons negros e do espaço negativo das ilustrações, por parte do autor brasileiro. Há bastantes referências nestes contos, passando pela música, pela literatura ou pela filosofia existencialista, e as várias histórias acontecem em lugares muito variados como Florença, Barcelona, São Paulo ou Porto Alegre. Sendo um bom livro, admito que, dos três do autor, foi este aquele que menos me marcou, talvez pelo fio condutor - se é que o mesmo existe - ser algo disperso entre as diversas histórias. O que, reconheço, até pode ser um ponto a favor para os leitores que procuram histórias mais curtas e independentes, sobre variados temas.
Finalmente, O Diabo e Eu, obra através da qual conheci o trabalho do autor brasileiro, é uma biografia/homenagem muda, sem qualquer balão de fala ou legenda, ao músico Robert Johnson, uma figura incontornável dos blues americanos que criou na década de 1930 uma sonoridade entendida por muitos como a ligação entre o blues rural, acústico e sujo, e o blues moderno e eletrificado. O seu talento foi atribuído a um suposto pacto que ele teria feito com o Diabo na encruzilhada das estradas 61 com a 49, nos Estados Unidos. Pegando nas canções de Johnson para a partir daí construir uma narrativa de tom existencial sobre esta figura emblemática, Alcimar Frazão oferece-nos um livro que consegue o feito de fazer o leitor refletir e, por ventura, reler o livro uma segunda vez para mais profundamente conseguir captar os intentos do autor, já que há várias mensagens subliminares a retirar daqui. Gostei muito!
Olhando para estes três livros como um todo, é legítimo afirmar que os mesmos formam uma espécie de tríptico temático e estético, cada um mergulhado em atmosferas próprias é certo, mas todos conectados por uma visão profundamente humana e estilisticamente apurada da condição existencial. A arte ilustrativa de Frazão é um elemento unificador poderoso, com traços firmes e contrastes duros, que evocam tanto a elegância clássica da banda desenhada europeia, quanto um certo lirismo moderno e cinematográfico.
O desenho de Alcimar Frazão é, pois, e sem dúvida, um espetáculo à parte. Executado sempre a preto e branco puro, o seu estilo alia o rigor técnico à expressividade emocional. A elegância realista com que representa corpos e rostos é impressionante, revelando uma atenção minuciosa ao detalhe sem nunca perder a força simbólica. As sombras e luzes, magistralmente distribuídas, conferem profundidade psicológica a cada cena, enquanto os enquadramentos e composições sugerem uma clara influência do cinema clássico e da banda desenhada europeia.
O seu estilo de ilustração é verdadeiramente belo, diferenciado e magnífico! Daqueles tipos de desenho carregados de charme, drama e noção estética que, tudo somado, são um deleite para os olhos e que é particularmente notável nas sequências de silêncio, onde as personagens falam apenas com os olhos ou com o corpo. Nestes momentos, o estilo de Frazão transcende o desenho narrativo e entra no território da poesia visual.
Quanto às edições dos três livros, todas elas apresentam o mesmo tipo de aspeto e acabamento. Os três livros envergam capa mole com badanas, bom papel baço no interior, boa encadernação e boa impressão. Os livros O Diabo e Eu e Cadafalso, por terem papel preto, adquirem um certo requinte e destaque visual que me agrada especialmente.
Em suma, Alcimar Frazão é um artista verdadeiramente impressionante, que muito admiro, e que ao longo destes três livros nos acena com um estilo de ilustração depurado, belo, cinematográfico e poético. O facto de também as histórias terem algum existencialismo abstrato pode fazer com que os livros do autor não sejam necessariamente fáceis - ou para toda a gente. Contudo, isso não me impede de afirmar que este é um dos meus autores preferidos da banda desenhada brasileira da atualidade. Não deixem de dar uma oportunidade ao seu trabalho.
NOTA FINAIS (1/10):
Lovistori: 8.6
Cadafalso: 7.4
O Diabo e Eu: 8.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Lovistori
Autores: Lobo e Alcimar Frazão
Editora: Polvo
Páginas: 80, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 169 x 233 mm
Lançamento: Outubro de 2023
Autor: Alcimar Frazão
Editora: Polvo
Páginas: 120, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 169 x 233 mm
Lançamento: Maio de 2019
Autor: Alcimar Frazão
Editora: Polvo
Páginas: 48, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 169 x 233 mm
Lançamento: Junho de 2015
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