Sempre disse que Luís Louro precisava de um álbum que, no teor e forma, fosse mais sério. Sempre o disse! E não o dizia por não gostar dos livros de Luís Louro, pois sempre fui fã do trabalho do autor. Também não o dizia por não gostar, genericamente, de trabalhos humorísticos. Gosto, claro. Ou por achar que uma obra dramática ou sorumbática é melhor só por não ser humorística. Claro que não. Dizia-o porque sempre me pareceu que Luís Louro parecia não dar o "passo seguinte" na sua carreira, que era o de fazer uma história mais séria, que pudesse fazer com que o autor fosse/seja levado mais a sério.
Pois bem, Os Filhos de Baba Yaga, o seu novo livro recentemente publicado pelas editoras A Seita e Arte de Autor é o passo que a carreira de Luís Louro precisava. É o seu livro mais sério e, de longe, o melhor. Um clássico instantâneo da banda desenhada nacional que será celebrado daqui a um ano, daqui a 10 anos e daqui a 100 anos. A banda desenhada portuguesa tem mais um livro obrigatório e esse livro é este Os Filhos de Baba Yaga! Digo até mais: por ser um livro com uma história bastante universal, ambientada até fora da realidade portuguesa, este livro tem tudo para ser "exportável", permitindo ao autor, quiçá, ter o reconhecimento no estrangeiro que, por ora, já aufere em terras nacionais.
Mas vamos por partes.
A história de Os Filhos de Baba Yaga coloca-nos na Segunda Guerra Mundial, nas densas florestas russas, no período histórico em que as tropas alemãs e soviéticas se enfrentavam depois de Hitler ter decretado a invasão da Rússia no evento que ficou conhecido como Operação Barbarossa. Acompanhamos a luta pela sobrevivência - a qualquer custo - de um conjunto de onze crianças órfãs. São crianças que foram juntas pela necessidade de sobrevivência num território completamente devastado, onde a fome impera, onde o frio enregela e onde os estilhaços das explosões e os ruídos dos disparos dos tanques, são uma contante ameaça de morte.
Trata-se, pois, de uma história de sobrevivência que, naturalmente, nos remete para outras obras célebres em que vimos as crianças a terem que se juntar para sobreviver a um conjunto de privações. O Deus das Moscas, de William Golding - que até recebeu uma belíssima adaptação recente para banda desenhada pelas mãos de Aimée de Jongh - será a obra que mais ecoa na cabeça quando lemos este Os Filhos de Baba Yaga. Porém, ambas as histórias são bastante diferentes, sendo apenas a temática sociológica onde existe maior familiaridade. O novo livro de Luís Louro lembrou-me também dos filmes Fury ou Inglorious Basterds, por motivos diferentes. E outra obra que me lembrou este Os Filhos de Baba Yaga foi o videojogo Heavy Rain, da Quantic Dream, que - sendo ainda mais diferente do que as obras supramencionadas - também nos remete para a questão de até onde somos capazes de ir para assegurar a sobrevivência de nós mesmos ou daqueles que amamos?
Os Filhos de Baba Yaga, sendo uma obra duríssima e fortemente recomendada para um público adulto, é ainda mais gutural nos seus pressupostos. O romantismo do amor ao próximo não é propriamente aquilo que Louro nos apresenta, mas sim o instinto natural da sobrevivência humana para, através de todas as forças que ainda restarem, mentais ou físicas, não se sucumbir à morte. É o nosso mais primordial instinto e acaba por ser um conceito bastante aberto que permite uma boa exploração narrativa.
Se a premissa é boa, a história também é bem explanada pelo autor, levando o leitor a embrenhar-se na leitura, querendo saber qual será o destino destas personagens. Personagens essas que são bastante carismáticas. Confesso que, ao início, estava um pouco cético com um tão grande número de personagens. São onze e considerei que isso poderia desfocar um pouco a atenção do leitor, até porque nenhuma das personagens assume um claro protagonismo em relação às demais. Percebi depois que talvez o intento do leitor não fosse o enfoque numa personagem em concreto, mas no grupo das crianças como um todo. E, com efeito, a própria personagem principal não é esta ou aquela criança, mas o grupo das crianças a que podíamos dar o nome de "infância corrompida". Mesmo assim, entre as parcas críticas que possam ser feitas em relação à obra, admito que se considere que talvez certas personagens pudessem ter sido mais desenvolvidas.
Não obstante, a verdade é que o ritmo com que Luís Louro nos entrega esta história e estas personagens é, felizmente, bastante lento - especialmente para o habitual modus operandi que conhecemos do autor. Ora, isto permite que a história se vá desenvolvendo de forma mais natural e orgânica, exigindo uma leitura mais atenta do leitor e ofertando à narrativa uma credível passagem do tempo que sedimenta e torna mais complexas as personagens, fazendo-nos refletir sobre a guerra, sobre as crianças e sobre tudo aquilo que uma criança num cenário bélico tem que enfrentar. Se já é difícil para os adultos, imagine-se para as crianças! Sendo um relato histórico fictício, bem que poderia ter sido uma história real. Além disso, a temática também se mantém tristemente atual nos tempos que correm, quando a guerra continua a ser uma realidade nas vidas de milhares de crianças. E até neste ponto, na universalidade do tema proposto, Luís Louro acertou.
O autor português parece, aliás, ter dado tudo de si neste álbum. As coisas foram feitas com mais propósito, com mais tempo, com mais coração e com mais cabeça. E um exemplo claro disto é o próprio humor que, sim, também aparece neste álbum, mas com um maior requinte, pois também nessa área, o autor se revela mais inteligente do que nunca: é que, ao utilizar as crianças enquanto móbile para as suas tiradas humorísticas, o autor consegue não se desfocar da sua história. Não é Luís Louro a fazer uma piada ou trocadilho... são as personagens que as fazem... porque são crianças num cenário hediondo que, através de uma piada, podem sacudir o peso da sua existência. E isso muda tudo! Considero até que talvez essa tenha sido uma das maiores fraquezas do também muito aconselhável Dante. A grande maioria dos outros livros de Luís Louro pode ser inserida na categoria de humor - e isso não é algo que eu considere redutor, mas sim acrescentador -, mas este Os Filhos de Baba Yaga, está longe de poder figurar numa categoria humorística. Pode arrancar-nos um sorriso, aqui e ali, mas apenas e só pela forma como as personagens se comportam entre si, por oposição ao drama reinante à sua volta.
Outra opção narrativa muito bem conseguida - que foi por ventura a maior surpresa para mim - neste Os Filhos de Baba Yaga, foi a utilização de uma voz off, que funciona como a narração dos acontecimentos, que é feita por uma das crianças do grupo. Ora, não só esta voz off une muito bem os acontecimentos, a passagem do tempo e nos revela o sentimento que vai imperando no grupo de crianças, tornando a narrativa mais bem montada e com menos pontas soltas, como tem o condão de nos oferecer belas frases e metáforas, que nos põem a pensar, revelando-se, inequivocamente, como o melhor texto já escrito pelo autor. São várias as frases e ideias que são - e permitam-me o termo em inglês - "quotable", e isto é uma coisa por que me bato nas minhas análises: considero que quando um livro tem uma ou várias frases que nos ficam na memória, é forçosamente um melhor livro, pois impacta-nos de uma outra forma. Não sabia que Luís Louro (também) tinha esta faceta, mas fiquei a sabê-lo a partir de agora!
Se isto foi uma surpresa, não posso dizer o mesmo do aspeto visual da obra. Na vertente da ilustração, Luís Louro tem apresentado nos últimos anos uma evolução gritante, estando os seus desenhos melhores de livro para livro. Recentemente reli O Corvo III e já não me lembrava como o traço e cores do autor tinham evoluído tanto daí para os mais recentes tomos da série. Também em Dante, o trabalho do autor já havia sido fantástico. Não foi, portanto, uma enorme surpresa que o trabalho de Luís Louro continuasse a evoluir neste Os Filhos de Baba Yaga. Mesmo assim, esperando já algo de fantástico, consegui ficar surpreendido, pois também no cômputo da ilustração, este é o melhor trabalho do autor até à data.
Os desenhos são impressionantes! Cada página revela uma mestria gráfica inquestionável, com uma paleta cromática que reforça o mistério, a tensão e a beleza sombria da narrativa. As composições são cinematográficas e o detalhe visual é tal que convida à releitura, permitindo sempre descobrir novos elementos que antes haviam passado despercebidos. Louro demonstra aqui um domínio absoluto do ritmo visual e da construção de ambiente. A reprodução da neve, da floresta, dos uniformes dos soldados, dos veículos, dos tanques de guerra e dos detalhes minuciosos nas expressões faciais das personagens contribui para criar uma atmosfera densa. Tudo está representado de forma perfeita e com uma atenção ao detalhe absolutamente impressionante. As personagens apresentam uma excelente expressividade, sendo fiéis em traços àquilo a que o autor já nos habituou, mas apresentando um maior aprimoramento visual. Os enquadramentos, frequentemente cinematográficos, e a composição das pranchas revelam uma maturidade artística que coloca Louro num patamar restrito de autores nacionais. O trabalho de cores é absolutamente notável, sendo imprescindível para que visualmente este livro seja tão forte. Faço ainda uma nota para as várias ilustrações de grande dimensão que pululam no livro, que permitem que Luís Louro se apresente ao seu melhor nível de sempre.
Outra coisa bem conseguida no trabalho de ilustração nesta obra é que embora a história seja dura e tenha alguma violência, Luís Louro não recorre ao "espetáculo fácil"; em vez disso, sabe alternar entre as partes mais violentas da narrativa e um conjunto de ilustrações onde impera a serenidade, através de uma experiência de leitura contemplativa, quase litúrgica, onde cada página convida à pausa e à reflexão. Os Filhos de Baba Yaga consegue ser, portanto, notável tanto pela sua profundidade temática como pelo seu virtuosismo gráfico.
Em termos de edição, aplaudo o cuidado especial com que A Seita e a Arte de Autor trataram este livro, numa edição bastante luxuosa. A capa é dura e baça, com textura aveludada e detalhes a verniz, e tem uma lombada em tecido vermelho com o texto em letras douradas. Tudo muito requintado. O interior do livro apresenta bom papel brilhante, boa encadernação e boa impressão. Há ainda um prefácio da autoria de David Soares - que, quanto a mim, não aparece especialmente alinhado com a obra em questão, perdendo-se em divagações abstratas e latas que acrescentam pouco ou nada e que se revelam "muita parra e pouca uva", mas, enfim - e um belo dossier de extras com 16 páginas, que inclui esboços e estudos com comentários do autor, mostrando-nos o seu processo criativo. Há ainda uma boa entrevista de João Miguel Lameiras que se revela pertinente e especialmente inteligente por responder a questões que a leitura do livro poderia suscitar como a questão da presença das folhas secas esvoaçantes (uma imagem de marca do autor), as expressões não traduzidas em russo, entre outras informações bem-vindas. Foi igualmente lançada uma edição exclusiva da loja Wook, com uma capa alternativa e que vinha acompanhada por um ex-libris autografado pelo autor. Estamos pois, perante uma bela edição que inaugura o selo editorial Folha de Louro que, espera-se, venha a publicar mais obras do autor.
Em suma, Os Filhos de Baba Yaga é uma obra absolutamente fantástica, um marco incontornável da banda desenhada portuguesa contemporânea. Louro atinge aqui um novo patamar criativo, superando-se tanto a nível narrativo como visual. Conhecido há décadas como um dos nomes mais relevantes da BD nacional, o autor consegue que este livro transcenda as suas obras anteriores, impondo-se, sem qualquer hesitação, como o seu melhor livro até à data! Mais do que apenas um excelente álbum, Os Filhos de Baba Yaga afirma-se como um dos melhores livros portugueses de banda desenhada de sempre! É uma obra madura, ambiciosa e profundamente envolvente, que não só confirma o talento de Luís Louro como o eleva. Verdadeiramente obrigatório, este livro é indispensável não apenas para os leitores habituais do autor, mas também para todos os amantes de banda desenhada. Até mesmo para aqueles que nunca deram a devida oportunidade a Luís Louro, terão aqui uma porta de entrada impressionante para o seu universo criativo. É uma leitura que marca, que desafia e que perdura - como só os grandes livros conseguem fazer. Que ótima maneira de assinalar os 40 anos de carreira de Luís Louro!
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Os Filhos de Baba Yaga
Autor: Luís Louro
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 132, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 230 x 310 mm
Lançamento: Abril de 2025
Viva, se tivesse que fazer um top 5 do Louro, quais seriam os títulos?
ResponderEliminarObrigado pelo comentário. Já me fizeram essa questão e até espero, futuramente, fazer um top das obras do autor. Um abraço
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